Saturday, October 31, 2015

a solidão é o verdadeiro espelho

pensei na importância de se passar um tempo sozinho. a física provou que todo observador interfere no objeto observado. assim, quando em grupo, sofremos a projeção das outras pessoas e deixamos de ser apenas nós mesmos. é um fenômeno do qual é impossível fugir, pois trata-se duma lei da física. somente quando sozinhos é que percebemos quem nós realmente somos. a solidão é o verdadeiro espelho.

Wednesday, October 14, 2015

Deus reside na ausência de Deus

tive pensando na natureza do milagre e percebi que o divino traz essa contradição; quanto mais nos afastamos do divino, mais nos aproximamos do milagre; a natureza do milagre reside no impossível. água no deserto é milagre, água na floresta não. o milagre exige, portanto, a existência da imperfeição, da tormenta, do sofrimento. o aleijado só volta a andar por ser aleijado. o doente precisa do milagre, o saudável não. é justamente aqui que resida a contradição; o milagre é a mais forte manifestação do divino, o que significada dizer que o divino se manifesta, com força absoluta, somente na falta do divino. com outras palavras, a grandeza de Deus reside na ausência de Deus. é um pensamento assustador e encorajador ao mesmo tempo; pois quanto mais o pensamento assusta, mais ele aproxima de Deus.

Thursday, October 08, 2015

um perigo chamado Uber

fazia tempo que eu não bebia leite. estava com sede. alcancei um pacote na geladeira e tomei um copo. havia-me esquecido de como nosso leite é ruim. quantos não foram os escândalos, nos últimos anos, de leite adulterado? meu celular tocou. atendi a ligação, que imediatamente caiu. o meu celular está fora da área de cobertura, nenhum sinal, nada. não deveria, estou na cozinha, no mesmo lugar em que já telefonei tantas vezes antes.

penso no meu carro, que custa o triplo dos carros de tantos outros países e tem a metade da qualidade. lembro que tenho um compromisso. desço para a rua e pego um táxi. dou azar; é um daqueles em que tudo está errado. penso no serviço Uber, que, aos poucos, está sendo proibido em todo Brasil. tivemos um serviço de qualidade durante alguns meses e agora teremos que abrir mão da qualidade, para voltar aos velhos problemas de sempre.

e, de repente, dou-me conta de que o problema não é o Uber. nunca foi. a questão central é a qualidade. as instituições brasileiras repudiam a qualidade. se o Uber fosse um serviço made in China, com todos os problemas possíveis e imagináveis, seria autorizado. afinal, por um acaso o governo se importa com a concorrência desleal que o mercado brasileiro sofre quando é inundado com falsificações? em toda esquina vendem-se produtos chineses. garanto que tiram mais empregos que supostamente o Uber tiraria dos taxistas.

as filas nas agências bancárias são intermináveis, nos correios nem se fala. nos ônibus é aquele desespero que todos nós conhecemos bem. as companhias áreas são um caos, e os aeroportos lembram rodoviárias do interior. as estradas são fábricas de acidentes. os hospitais são desumanos. o futebol virou chacota mundial. a segurança pública é um projeto sem projeto, resume-se a estatísticas de criminalidade.

então, imaginem o problema que é um serviço como o Uber para o Brasil. de repente, existe algo que funciona, algo impecável, moderno e respeitoso. um serviço assim faz o cidadão acostumar-se à qualidade, faz o sujeito pensar, torna-o exigente. comparações da ordem – se o Uber funciona, por que as operadoras de celular não funcionam? – serão inevitáveis. é uma bomba relógio esse Uber. hoje o cidadão quer um táxi perfeito, amanhã ele quer um hospital perfeito, finalmente ele exigirá políticos perfeitos... não, isso não, tudo menos isso, que perigo! melhor cortar o mal pela raiz. melhor proibir o Uber de uma vez por todas.

Tuesday, October 06, 2015

chuva em Copacabana

a chuva é um paradoxo, é ruído que traz silêncio. o sossego da chuva me fascina. ela rompe e a cidade respira, buzinas se calam, obras paralisam, o burburinho se abriga no boteco. aqui em Copacabana a chuva é única capaz de impor silêncio. sem autoritarismo; é o abraço da mãe que serena a histeria do bebê.

Friday, October 02, 2015

o PM e Harry Potter

Minha primeira reação ao ler sobre o policial militar e dublador de Harry Potter, morto quando patrulhava uma comunidade, foi: que raios o dublador de Harry Potter estava fazendo de PM num tiroteio com bandidos. Por que ele era policial? Por que ele não se dedicava à profissão de dublador integralmente? Que louco, pensei.

Então, aos poucos, dei-me conta de como os policiais militares são desumanizados. A sociedade esquece que, por trás de cada PM, existe uma alma que sonha e deseja, que faz planos, que se aventura por outros territórios, que gosta de cantar, cozinhar, jogar futebol e de pescar, que leva os filhos ao cinema, que se irrita com os rumos políticos do país e que tem paixão por bichos de estimação. Alguns são vegetarianos, outros militantes dos direitos da mulher, outros ainda praticam yoga e meditação. Há os chatos que discutem todo assunto com exagerada veemência e há os que aprenderam a valorizar o silêncio. Muitos têm problema de colesterol, muitos outros se gabam de excelente saúde. E aqueles que fazem regime e querem convencer os outros a emagrecer também? E quantos já sonharam em ser ator e receber um Oscar? O soldado Caio Cesar Ignácio Cardoso de Melo, dublador de Harry Potter, deve tê-lo sonhado, enquanto assistia no cinema, cercado de familiares, à estreia do famoso bruxinho. Fechou os olhos por um instante e se viu na famosa premiação, recebendo o Oscar fictício de melhor dublador. Imaginem qual foi sua emoção; imaginem o orgulho dos parentes. Qualquer um de nós teria se emocionado, de maneira igual, numa estreia tão importante.

Esse texto não fala da violência que os policias sofrem no dia a dia. Esse texto fala da violência que eles sofrem por ninguém lhes enxergar a alma humana. A opinião pública os isolou numa categoria de estatística, em que um certo número de uma sigla impessoal (PM) morre anualmente em confronto. É preciso entender que, por trás da sigla PM, existe um ser humano. E, quando morre um ser humano, morre um sonho e morre uma esperança.

Espero que, um dia, possamos olhar para nossos policias militares e entender que são somente pessoas perseguindo objetivos, assim como todos nós; que ser policial seja uma escolha como tantas outras, entre médicos, advogados, professores, garis e jornalistas; que possamos entender, sem estranhamento, que o dublador de Harry Potter tenha escolhido ser um PM.

Alguns vão dizer que meu texto faz uma abordagem poética dos policiais. Eu respondo que o soldado Caio Cesar Ignácio Cardoso de Melo me mostrou que há poesia na polícia. Que somos todos apenas seres humanos, inseridos nos mais variados contextos, que convergem para uma só realidade, essa insana loucura social chamada Brasil. (fotos: internet)